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O Reino de Deus e o Bem Viver

A relação entre o Reino pregado por Jesus e o conceito de Vida Boa (Bem Viver) dos povos indígenas

 Para Quinto Regazzoni, teólogo italiano residente no Paraguai, a ética do Bem Viver pressupõe uma base teológica, já que toda essa concepção de vida está impregnada com o transcendente e com a presença do Pai-Mãe supremo: uma teko-logia.


Os povos originários da América Latina falavam em viver bem. Jesus falava em viver em plenitude. Os índios buscavam a terra sem males. Jesus anunciava a vinda do Reino. É possível estabelecer algum tipo de aproximação entre essas duas perspectivas teológicas?
Para Quinto Regazzoni, teólogo italiano e padre dehoniano, que trabalhou muitos anos no Uruguai e hoje reside no Paraguai, isso é possível, desde que se traduza em “uma atitude fundamental para o diálogo: a escuta atenta e a humilde e constante capacidade de aprender com os demais”.
Os povos indígenas do continente, defende, propuseram uma filosofia ancestral de vida, o Sumak-Kawsay, isto é, a Vida Boa: “um dom compartilhado que gera bem-estar para todos, e não apenas para alguns”, explica. E isso traz novas perspectivas para as dimensões social, econômica cultural e religioso-transcendental das nossas sociedades contemporâneas.
O Bem Viver também está em direta relação com a busca da Ivy marãne’y, a terra sem males sonhada pelos guarani. “A busca de uma terra sem males não é um sonho distante, inalcançável, mas sim uma tarefa cotidiana que encarna o projeto de Vida Boa nessa sociedade da reciprocidade”, afirma Regazzoni, na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line. “A itinerância física desses povos seminômades indica uma itinerância espiritual, uma busca perene, uma constante transitoriedade”, diz.
O conceito do Bem Viver, segundo o teólogo, também propõe outra relação do ser humano com a natureza. O cosmos dos guarani está ordenado com base em um contexto festivo que celebra a gratuidade e a reciprocidade.
Tudo isso manifesta uma concepção de vida que está impregnada com o transcendente e com a presença do Pai-Mãe supremo: nas palavras de Bartomeu Meliá, uma teko-logia, que, segundo Regazzoni, “tem muito a ver com toda a teologia que fala de um Deus da Vida e, especialmente, a teologia de Jesus de Nazaré”.
Jesus, por exemplo, é visto por seus contemporâneos como um profeta apaixonado por uma vida mais digna (teko marangatu, em guarani) para todos, uma vida boa (teko porã). “Ele proclama o Reinado de justiça e misericórdia de Deus, isto é, sua maneira de ser, cheia de bondade, que instaura a ansiada ‘Shalóm’, que pode ser traduzida como bem-estar, uma vida plena, cheia de prosperidade”, afirma.
Quinto Regazzoni, teólogo e sacerdote dehoniano, nasceu em Bérgamo (Itália). É licenciado em Disciplina das Artes pela Università di Bologna e tem pós-graduação em Comunicação pela Universidad Católica del Uruguai. Foi fundador e diretor da revista Umbrales, de Montevidéu. Morou por muitos anos no Uruguai e, neste ano, mudou-se para Assunção, no Paraguai. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Sumak Kawsay (quéchua equatoriano) ou Suma qamaña (aimará boliviano) expressam a ideia de Bem Viver. Quais são os aspectos centrais desse conceito indígena?
Quinto Regazzoni – O conceito de crescimento econômico como base do desenvolvimento social é um conceito feito à medida das ilusões e das utopias do neoliberalismo e do capitalismo tardio. É como um dogma religioso, em que o economista coloca toda a sua confiança, proclamando soluções “científicas” que supostamente tirariam a humanidade da barbárie do subdesenvolvimento. Essa noção de crescimento econômico nasce do conceito iluminista de progresso e das promessas emancipatórias da modernidade. Essa política do progresso ilimitado e do crescimento global deu, nos últimos anos, trágicas provas de produzir mais pobreza e mais desigualdade. Frente a isso, os povos indígenas do continente conseguiram fazer ouvir sua voz e propuseram a sua ancestral filosofia de vida, o Sumak-Kawsay, isto é, o Bem-Viver, ou, melhor traduzido, a Vida Boa. Os aspectos centrais dessa concepção ancestral são:
1 - UMA DIMENSÃO SOCIAL – Propõem-se medidas de equilíbrio e de reciprocidade entre os seres humanos, abrindo caminhos de solidariedade. O exercício dos direitos das pessoas, das comunidades e dos povos se dá em um equilíbrio entre sociedade e natureza, e entre os seres humanos. Para isso, cada um está disposto a receber e a dar em reciprocidade, em uma sociedade em que se prima pela solidariedade. A Vida Boa é, então, um dom compartilhado que gera bem-estar para todos, e não apenas para alguns. Nesse sentido, essa meta não é alcançável em termos individuais. Trata-se de uma meta que abrange a todos, respeitando a diversidade que se apresenta em cada sociedade.
2 - UMA DIMENSÃO ECONÔMICA – A sociedade deve medir seu bem-estar não tanto pelas cifras macroeconômicas, mas sim pela qualidade de vida de todos os seus integrantes. A Vida Boa também considera a questão dos recursos naturais não com fins de exploração, mas sim em um contexto de conservação e de convivência mútua entre natureza e o ser humano.
3 - UMA DIMENSÃO CULTURAL – O conceito indígena de Vida Boa propõe que se considere cada país ou nação como uma cultura e sociedade plurais, atentas ao particular e reconhecendo a contribuição de todas as minorias. O conceito de Sumak Kawsay se apresenta então como uma proposta alternativa ao estilo de vida materialista, centrado em um progresso econômico social que privilegia uma produção orientada ao consumo, à acumulação de capitais, em detrimento, muitas vezes, dos bens culturais.
4. UMA DIMENSÃO RELIGIOSO-TRANSCENDENTAL – O bem produzido pela sociedade, além de visar aumentar o nível de vida, com critérios ecológicos e de justiça social, também propõe e inclui um critério de transcendência e de bem-estar espiritual (cf. Umbrales, nº. 198, p. 3).
Essas quatro dimensões fundem-se e interagem em um único sistema harmonioso de convivência e de reciprocidade.

IHU On-Line – O Sumak Kawsay é também o caminho para a Ivy marãne’y (terra sem males), sonhada pelos guarani? Nesse sentido, como entender o progresso e o desenvolvimento?
Quinto Regazzoni – Agora que estou vivendo no Paraguai, um pouco mais perto do mundo e da cultura guarani, fico ainda mais fascinado pelo seu teko (= modo de ser). Os significados de reko são múltiplos, como já assinalava em 1639 o grande estudioso da língua guarani, o jesuíta Antonio Ruiz Montoya. Ela significa: maneira de ser, de pensar e de agir, hábito e costumes, norma e comportamento, sistema de vida e cultura. É mais do que evidente que os guarani estavam satisfeitos com esse modo de viver que definiam como ñande reko katu (nosso modo de ser autêntico e bom) ou ñande reko marangatu (nosso modo de ser santo, virtuoso e digno). Já nisso temos uma similitude surpreendente com o Sumak Kawsay dos povos andinos. No entanto, há algo mais específico: os povos guarani têm claro seu horizonte, sua vocação e missão, quando falam da Ivy marãne’y (a terra sem males).
Embora seja muito conhecida a expressão “terra sem males”, que os guarani puseram como fundamento de sua constante busca por um mundo melhor, convém aprofundar o sentido desse horizonte utópico que marcou a vida daqueles que povoaram o Cone Sul do continente.
A busca de uma terra sem males não é um sonho distante, inalcançável, mas uma tarefa cotidiana que encarna o projeto de Vida Boa nessa sociedade da reciprocidade. O estudioso da cultura guarani Bartomeu Meliá afirma que “o Guarani é um povo em Êxodo”. A itinerância física desses povos seminômades indica uma itinerância espiritual, uma busca perene, uma constante transitoriedade. Entretanto, há também um espaço de estabilidade que fixa e sacramentaliza essa busca: é a festa (arete), considerada como o tempo (ara), verdadeiro (ete). É o tempo autêntico, o tempo da Vida Boa, que é um sacramento da terra sem males e da felicidade plena. “Na dança, revela-se o xamã, que é ‘Nosso Pai’, o caminho. Esse caminho conduz à casa de Nossa Mãe, onde não faltam frutas, nem chicha para beber. É a festa” (MELIÁ, 1991, p.52).
Os bailes, os cantos, a chicha tomada até a embriaguez, o fumo ritual do tabaco que envolve todos os presentes não são só parte de um cerimonial, mas sim a expressão dessa terra sem males que estava na origem e estará no fim.
Deve-se destacar que a arete dos guarani era um tempo autêntico porque recolhia e repartia os frutos do seu tempo cotidiano. Na festa, os frutos da terra e do trabalho são oferecidos como dom e graça (aguyje). Por meio dessa graça, a pessoa alcança o desejado bem-estar e tem a virtude do bem-viver, que tem muitas manifestações: teko porã (ser bom), teko joja (ser igual, ser justo); teko ñemboro’y (ser sereno), teko marangatu (ser santo, bom)...
Esse bem-viver não era algo teórico. Traduzia-se em bondade e sabedoria prática. Vemos isso por exemplo na sua arte de cultivar a terra, conhecendo e classificando perfeitamente todas as espécies vegetais e animais, as características ecológicas dos diversos lugares. O grande botânico suíço-paraguaio Moisés S. Bertoni dá testemunho disso em sua obra de classificação das plantas (depois do grego, o guarani é o idioma que mais contribuiu com terminologia para a nomenclatura botânica).
Os bons conhecimentos práticos dos guarani tornavam-nos hábeis “agrônomos”. E, em vez de explorar a natureza, preferiam emigrar: nunca deixaram desertos atrás de si. O colono europeu acabou pedindo emprestado esses conhecimentos aos guarani (MELIÁ, 2004, p.20).
IHU On-Line – Que tipo de relação entre o ser humano e a natureza nos é proposta pelo Bem-Viver? A partir disso, como podemos compreender a ordem dada por Deus de “dominar” ou “submeter” a terra, segundo o livro do Gênesis (1,28)?
Quinto Regazzoni – Hoje todos somos conscientes de que a salvaguarda da criação é um imperativo urgente. Fenômenos como o aquecimento global ou a extinção dos recursos e das espécies são uma ameaça real e iminente. A sociedade moderna com o seu discurso de desenvolvimento ilimitado, ao instrumentalizar a natureza, rompeu a unidade do homem com seu entorno e provocou uma das crises mais graves e profundas, que põe em perigo toda a existência humana sobre a Terra.
O conceito de bem-viver propõe outra relação do ser humano com a natureza. Entre os povos guarani, por exemplo, a boa terra recebe a sua formosura e plenitude de uma relação festiva com seu fundamento original, Nosso Primeiro Pai. O cosmos (ordem) dos guarani não é ordenado com base em um interesse de utilidade ou, pior, de exploração, mas sim em um contexto festivo que celebra a gratuidade e a reciprocidade. Instauram-se assim uma relação íntima com o princípio transcendente e, ao mesmo tempo, uma relação solidária com o próximo.
Um belo texto mítico dos mbyaguarani do Guairá diz:
“Tendo conseguido a plenitude dos frutos, deles darás de comer a todos teus próximos, sem exceção. Os frutos perfeitos são produzidos para que deles comam todos, e não para que sejam objeto de avareza. Dando de comer a todos, só assim, só vendo nosso amor a todos, Nosso Pai Primeiro prolongará nossos dias para que possamos semear repetidas vezes” (MELIÁ, 1991, p. 68).
Nessa festa da reciprocidade, o guarani se faz “senhor” da terra não para explorá-la, mas sim para transformá-la em um fruto de amor e unidade. Com o trabalho de muitos, unidos em mutirão (potirõ), obtiveram-se os frutos; com uma festa (arete) de muitos faz-se a redistribuição. Ali, na festa guarani, se obtém a centralização do cosmos, ali está o centro da terra, essa terra sem males à qual se aspira.
Temos aqui um paralelo significativo com o relato bíblico da criação, em que o ser humano é posto no centro do jardim da criação. A ele corresponde dar o nome (dar identidade e plenitude) às criaturas; não para explorá-las, mas sim para relacioná-las ao seu centro.
Quando Deus lhe faz guardião e continuador seu no desenvolvimento e cuidado da criação, aparecem as discutidas palavras “Submetam a terra e dominem...” (Gen 1, 28). No entanto, esse senhorio delegado por Deus deve ser entendido em sua própria perspectiva criadora, de serviço e cuidado amoroso, como muito bem especifica o segundo relato da criação (Gen 2, 15): “Javé pôs o ser humano no jardim do Éden para que o cultivasse e o cuidasse” (o verbo original é servir). Nada mais e nada menos do que o trabalho, por humilde e simples que seja, é parte desse “senhorio-serviço” que Deus nos encomendou. Continuar o desenvolvimento, vencer os mistérios da natureza, tornar possível a vida, buscar e produzir o alimento, criar beleza, pôr ordem e beleza no mundo. Tudo deve ser, para o crente em Deus, uma tarefa divina, uma tarefa entendida como um dom, encomendada pelo próprio Deus. Até o trabalho se transforma em graça, em gratuidade recebida e dada; em uma vida gastada, mas ao mesmo tempo fecunda. Novamente, os povos guarani nos ajudam a compreender essa verdade com a sua filosofia de vida, seu teko marangatu, teko porã.

 IHU On-Line – Como se entende a noção de alteridade (o próximo, o Outro) e de comunidade a partir do Bem-Viver?
Quinto Regazzoni – O que o Bem-Viver (sumak kawai ou teko porã) sublinha é, acima de tudo, a dimensão solidária da comunidade humana. Nem o desenvolvimento, nem o crescimento econômico são solidários e não o podem sê-lo, porque entrariam em contradição com suas lógicas egoístas de “acumulação.
No entanto, quando falamos da solidariedade do Bem-Viver, não significa achatamento ou uniformidade. Para esse assunto, quero citar outro grande pensador jesuíta de outras latitudes (que amou a América Latina): Michel de Certeau6 (Mai senza l’altro, 1993, p. 18), que fala de um dinamismo constantemente assegurado pela chegada do estranho, do outro, isto é, “uma solidariedade sempre edificada sobre o respeito pela diferença”.
Para que a nossa busca de uma Vida Boa seja torne crível, deve radicar-se no encontro com o outro. Esse voltarse ao outro, no entanto, abre-nos caminho para o nosso próprio espaço. Por isso, Certeau (La debilidad del creer, 2006, p. 28), diante do outro, proclama: “Sem ti, já não posso viver”. O Outro é algo diferente de mim, mas é também alguém de quem preciso, “posto que o que eu sou de mais verdadeiro está entre nós”. Escolher essa experiência do Outro significa, ao mesmo tempo, escolher um caminho e um lugar (estável e firme). De um lado, o caminho é um partir que nunca termina. De outro, o lugar estável é uma prática comunitária, um fazer juntos, uma minga (mutirão). O caminho para a terra sem males só se faz realidade no intercâmbio com os outros, com a comunidade.
E no nomadismo guarani, em busca da terra sem males, . A relação de solidariedade para com o outro só raramente significava uma complementaridade de interesses (“dou-te para me dês”). A reciprocidade dos guarani se fundamenta em algo que não é nem de si mesmo, nem do outro, e que se encontra para além de ambos. É uma abertura ao que está sem determinação e sem limite, que bem podemos chamar de infinito. Para os guarani, o corpo e o rosto do Outro torna presente o infinito, a meta sempre sonhada. O Outro se transforma em uma singularidade absoluta. Cada rosto, cada nome, cada pessoa, apesar de sua finitude e de seu limite, transforma-se no infinito da humanidade, e, por isso, cada pessoa merece atenção e ajuda. Entre os guarani, “o cuidado do outro leva em consideração as condições da existência da humanidade: coisas práticas, limitadas, que não requerem esforços consideráveis ou heroicos, mas que estão ao alcance de todos. Assim, a primeira manifestação concreta da reciprocidade é a hospitalidade; a segunda, a proteção; e a terceira, o dom de alimentos” (MELIÁ, 2004, p. 84).

IHU On-Line – Qual é a teologia central da cosmovisão ancestral do Sumak Kawsay ou do Teko porã? Que aspectos religiosos e sagrados manifestam-se nesse paradigma? Que semelhanças e diferenças há entre eles e a mensagem cristã?
Quinto Regazzoni – Acima explicamos as virtudes do Sumak Kawsay ou do Teko porã. Acho que, com o que foi dito, também se pode falar de teologia, porque toda essa concepção de vida está impregnada com o transcendente e com a presença do Pai-Mãe supremo. Para a cultura guarani, Meliá (1991, p.78) chega a falar de uma teko-logia, que certamente tem muito a ver com toda a teologia que fala de um Deus da Vida e, especialmente, a teologia de Jesus de Nazaré. Quando o Mestre da Galileia falava de Deus, não ensinava dogmas religiosos, mas anunciava um estilo de vida que infundia uma nova esperança. Ninguém o considerava um mestre da Lei dedicado (um profissional do aparato doutrinal, diríamos hoje). Ele é visto como um profeta apaixonado por uma vida mais digna (teko marangatu) para todos, uma Vida Boa (teko porã).
Todos os povos ao longo da história sempre buscaram essa plenitude de vida, e a Boa Nova de Jesus também pode ter muitos pontos em comum com o teko porã. Jesus explicou claramente o significado de sua missão: “Eu vim para que tenham vida e vida em abundância” (Jo 10, 10). Sua proposta de plenitude é para todos, mas especialmente para os protagonistas da cultura popular (e marginal) de seu tempo, ou seja, agricultores, pescadores, pastores, servos/as... publicanos e prostitutas...
São vários os pontos em comum com a proposta do Sumak Kawsay ou Teko Pora. Jesus fala de um estilo de vida que abrange toda a existência em suas múltiplas dimensões: social, econômica, cultural e religiosa; que parte do coração do ser humano e se expande em um projeto global e integrador. É uma utopia factível, que tem suas raízes no presente e sua projeção sem limites em horizontes futuros. É um projeto que se realiza em comunidade e com a contribuição pessoal de reciprocidade.
A diferença mais perceptível é que Jesus, ao falar do Reino de Deus que Ele veio trazer, dá a esse projeto uma identidade muito específica. É uma obra do Pai Deus, que Ele, com sua encarnação, morte e ressurreição, leva à plenitude, para que todos dela possam participar. Essa identidade específica não se contrapõe nem se enfrenta com os conceitos do Bem-Viver. É como a questão da alteridade, da qual falávamos acima, que é o fundamento da comunhão.


IHU On-Line – Muitos estudiosos consideram o paradigma do Bem-Viver como uma forma de descolonização. Nesse sentido, ao reinterpretá-lo a partir do cristianismo, não se corre o risco de batizá-lo, colonizando-o novamente? Por quê?
Quinto Regazzoni – Hoje, falamos de colonização para indicar uma imposição, pela força e pela violência, de um poder sobre um território, povo ou nação. O processo de colonização pode ser de caráter econômico, político e inclusive cultural. Se não há uma violência e uma imposição, penso que todo processo de aproximação, comparação, diálogo pode ser considerado a partir da perspectiva da alteridade que constrói comunhão. Hoje, essa consciência é clara, e batiza-se só quem deseja livremente ser batizado. O verdadeiro perigo pode estar em uma surdez ou incapacidade de ver a partir da perspectiva do outro. Pode-se ser superficial, pouco crítico, não suficientemente disponível para compreender o outro.
No entanto, quando há uma disposição reta e honesta, os desacertos no diálogo também podem ser corrigidos. O mito do bom selvagem que não deve ser contaminado com uma aproximação indevida (colonizadora) também me parece prejudicial para a construção de um mundo novo. Só com boas intenções não se constrói o mundo, mas tampouco se constrói com desconfiança, medo e preconceito.
Todos temos que estar dispostos a escutar-nos e a aprender uns com os outros. Um exemplo que eu gosto de lembrar: quando os primeiros missionários dos guarani queriam traduzir o Pai Nosso para o seu idioma, descobriram que eles não tinham nem a palavra nem o conceito de Reino. Uma solução era impor a palavra em castelhano (que, aliás, não traduz bem o que a Bíblia e Jesus desejavam dizer). Outra solução era tentar traduzir o conceito, usando outras palavras mais adequadas. Isso implicava entrar em sua cultura e aprender a mentalidade guarani, para poder dizer com seus próprios conceitos o que se queria propor-lhes. Assim, nasceu uma tradição que me parece muito mais fiel do que a tradução castelhana: Vosso Reino foi traduzido como Nde reko marangatu (que significa “vosso modo de ser bondoso”). Com isso, fica claro também o paralelismo entre Reino de Deus e Vida Boa que tentamos explicar mais acima.

IHU On-Line – Pode explicar melhor qual é a relação entre o Reino pregado por Jesus e o conceito de Vida Boa dos povos indígenas?
Quinto Regazzoni – A principal perspectiva da pregação de Jesus não foi a de ser um mestre de vida moral. Ele não pregou preceitos ou leis que temos que cumprir. Jesus anunciou que a chegada do Reino de Deus era iminente (Mt 24, 34), “a proximidade bondosa” de Deus Pai já estava se manifestando. Por isso, ele se solidarizou com as pessoas humildes e viveu sua proximidade com as pessoas como um sinal da proximidade do Pai. Jesus surpreendeu a todos ao afirmar que o Reino de Deus já havia chegado. Ele queria que a proximidade se transformasse em um estilo de vida em comunidade, em que todos se sentissem protagonistas. Por isso, escolheu entre os seus discípulos 12 representantes do povo, um símbolo e o anúncio de uma nova maneira de viver como povo de irmãos.
Ele proclama o Reinado de justiça e misericórdia de Deus, isto é, sua maneira de ser, cheia de bondade, que instaura a ansiada shalóm, que pode ser traduzida como bem-estar, uma vida plena, cheia de prosperidade.
Esse anseio de Vida Boa já estava ao alcance de todos os que o queriam assumir. Jesus estava muito corajosamente convencido de que, apesar da dominação e da injustiça e da opressão, Deus já estava presente com seu Reinado, atuando de uma maneira nova.

Da mesma forma, a Vida Boa dos povos indígenas não é um projeto político ou social que se realizará algum dia... É, na verdade, uma realidade em ato, reafirmada e simbolizada na festa com suas danças e cantos, para atualizar a reciprocidade como sistema de vida, tanto em nível individual com o jopói (presente-mútuo), quanto em nível de trabalho comum com o potirõ (todas as mãos unidas). Esse princípio de reciprocidade, de dom, é o sustento da comunidade, e dali nasce o teku porã da Vida Boa dos guarani.
Com esse aspecto, que centra a fé na prática do amor recíproco, podemos estabelecer uma similitude profunda entre as duas concepções de vida. Entretanto, gostaria de sublinhar outra semelhança impressionante: no centro das duas visões de fé, está a Palavra, não como emissão de som, mas sim como fundamento de toda a criação.
Entre os guarani, a Palavra originou-se no Pai Primigênio (Ñanderuvusú), cuja essência é o amor, pelo qual ele convida cada guarani a praticar o amor recíproco (MELIÁ, 1991, p. 9). Assim se expressava, no final dos anos 50, um líder guarani: “Nosso Pai fez com que se abrisse a palavra fundamental, e que se fizesse como Ele,divinamente coisa do céu. Quando não existia a terra, em meio da escuridão antiga, quando não se conhecia nada, fez com que se abrisse como flor a palavra fundamental, que com ele se tornara divinamente céu. Isso fez o pai verdadeiro, o primeiro” (idem).
A Palavra que é consubstanciada com a alma humana. Um ser humano, ao nascer, é uma palavra que se põe de pé e se ergue até alcançar sua plenitude humana. Essa religiosidade exercia uma forte influência na organização social, já que consideravam que a terra se harmonizava mediante o amor fraterno e a solidariedade.
Ao ouvir Jesus falar no evangelho, constatamos como ele (definido como “Palavra feita carne”) levanta o ser humano em sua dignidade: livra os doentes, os pecadores e os endemoninhados de seu mal. A todos despede com uma palavra amiga: Shalóm, “Vá em paz”, desfruta de uma Vida Boa.
A Palavra salvadora de Deus já está agindo secretamente no mundo. Deus realizará essa utopia tão velha como o coração humano, o desaparecimento do mal, da injustiça e da morte.

Poderíamos seguir buscando outras semelhanças, mas prefiro deixar a pergunta em aberto: qual relação existe entre o Reino pregado por Jesus e o conceito de Vida Boa dos povos indígenas? Essa busca se traduz em uma atitude fundamental para o diálogo: a escuta atenta e a humilde e constante capacidade de aprender com os demais.
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